Globo Rural
ELIANE SILVA E CLEYTON VILARINO
Decisão infeliz, inconstitucional, crueldade, maus-tratos, contrassenso e causa de estresse a quem acompanha abate em frigoríficos. São alguns termos usados em uma carta de repúdio divulgada nesta quinta-feira (5/8) por entidades de proteção animal para pedir a revogação do artgo 7º da Portaria 365, publicada pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), em 16 de julho. O texto, que atualiza as normas técnicas federais de manejo pré-abate e de abate humanitário, permite o abate de vacas prenhas em fase final de gestação (até 90% do ciclo) e de seus fetos.
“A portaria cita as diretrizes da Organização Mundial de Saúde Animal (OIE) como recomendações que devem ser seguidas em caso de futura desatualização. Entretanto, a OIE já considera fêmeas em fase final de gestação como animais inaptos ao transporte, pois essa categoria animal pode ter seu bem-estar prejudicado durante a viagem. Vale ressaltar que algumas leis estaduais já proíbem o abate ou transporte de animais em período gestacional”, diz a carta.
O manifesto é liderado pela Animal Equality e assinado também pela Alianima, Fórum Nacional de Proteção e Defesa Animal, Instituto Ambiental Ecosul, Mercy For Animals, Sinergia Animalor e Associação dos Fiscais Agropecuários do RS (Afagro).
“Foi muito infeliz a decisão de inserir essa questão justamente em um regulamento que trata do abate humanitário”, disse à Globo Rural o professor de zootecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Mateus Paranhos, considerado um dos maiores especialistas do país em bem-estar animal.
Segundo ele, o abate de vacas prenhas é questionado tanto do ponto de vista do bem-estar animal quanto do humano, porque provoca sofrimento e constrangimento às pessoas que assistem o feto se debater na barriga e morrer por asfixia enquanto a vaca está sangrando. O especialista pondera que há estudos indicando probabilidades de 60% a 90% de o feto não ter consciência, mas diz que, como persiste a dúvida, o princípio da prevenção é o que deveria valer.
“Inadmissível”
Carla Lettieri, diretora-executiva da Animal Equality Brasil, entidade que atua em oito países, diz que é inadmissível que o Mapa, que deveria zelar pela proteção dos animais criados para consumo humano, legalize essa crueldade. “É uma prática de maus-tratos que fere o que está disposto na Constituição e na Lei de Crimes Ambientais que garantem a proteção a todos os animais.”
Ela relata que o regulamento sanitário antes de 2017 não era claro sobre a proibição do abate de vacas prenhas. Em 2017, o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA) estabeleceu que o abate poderia ocorrer, mas o produto deveria ir para carnes processadas. “Essa permissão causou um aumento muito grande do abate de vacas prenhas. No Rio Grande do Sul, o aumento chegou a 1.200% e os fiscais começaram a expor o problema.”
Em maio, a entidade, associada a outras organizações de proteção dos animais, especialistas em bem-estar animal, fiscais agropecuários, médicos veterinários e zootecnistas, encaminhou carta ao Mapa apresentando as razões técnicas pelas quais o transporte e abate de vacas no terço final da gestação deveria ser proibido. “A portaria foi uma grande surpresa para nós porque representa um enorme retrocesso, permitindo ainda o consumo da carne da vaca para qualquer finalidade.”
A questão do transporte é crucial por ser considerada uma etapa extremamente estressante na vida dos animais criados para consumo humano, especialmente no caso das fêmeas prenhas. Lettieri diz que, caso a vaca prenha seja enviada para o frigorífico, não pode haver volta porque seria um sofrimento em dobro no transporte. O ideal, diz, seria incorporar o que está na instrução normativa que regulamenta o transporte de animais vivos, que exige a realização de testes de prenhez antes do embarque.
Psicológico do trabalhador
O professor Paranhos diz que o envio dessas vacas para o frigorífico não é uma atividade comercial e só pode ser explicado como acidente de manejo nas fazendas ou intenção de alguns produtores em extrema necessidade de ganhar dinheiro na engorda mais rápida dos animais, que chegam a ganhar 70 kg na gestação.
O presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores nas Indústrias de Alimentação e Afins (CNTA), Artur Bueno de Camargo, lembra que a entidade já havia sido contra a medida que autorizou a destinação das carcaças desses animais para o consumo in natura, quando defendeu a proibição do abate de vacas prenhas.
“Eu vejo isso com muita preocupação porque com certeza mexe com o psicológico do trabalhador. Nós já estamos, inclusive, nos articulando para começar um movimento em cima dessa questão e trabalhar na questão da proibição, independentemente da fase da gestação”, conta o líder sindical ao ressaltar que a preocupação da categoria com as condições de trabalho no abate dos animais é antiga.
“A matança já é uma atividade difícil para quem é mais sensível. Agora imagina um trabalhador que abateu aquele animal e também vai ter que tirar um bezerro de dentro, que vai sair vivo, para depois deixar ele morrer com falta de ar e presenciar isso”, destaca Camargo. O plano da CNTA, segundo ele, é entrar em contato com as demais entidades que estão se posicionando contra a medida, incluindo o Ministério Público.
“Isso realmente tem consequências ruins e precisa ser interrompido. Estamos inclusive envolvendo nosso pessoal do jurídico do Ministério Público e acho que temos que envolver também as ONGS que têm um trabalho importante na questão e ver se a gente começa um movimento forte em cima disso e talvez criar uma lei proibindo esse tipo de procedimento”, avalia o presidente da CNTA.
Procurado nesta quinta-feira, o Ministério da Agricultura não respondeu se avalia revogar o artigo ou se pode recomendar testes de prenhez antes do embarque, bem como outras questões específicas enviada pela reportagem. Repetiu apenas as informações enviadas à Globo Rural na semana anterior, de que, atualmente, não existe regra que proíba o transporte de fêmeas gestantes para o abate, em qualquer idade gestacional, e que a portaria internaliza recomendações da OIE, que não proibe trânsito ou abate desses animais, mas estabelece condições para evitar a dor ou sofrimento das fêmeas gestantes e fetos.
A nota cita ainda que outras mudanças previstas na portaria 465 incluem a obrigatoriedade de os estabelecimentos terem técnico responsável específico pela avaliação das questões referentes ao bem-estar dos animais, o estabelecimento de períodos máximos de jejum dos animais e a previsão de regras específicas para o manejo de animais em sofrimento que requeiram o abate de emergência.