O panorama da escravidão contemporânea, as ações contra o trabalho degradante no Brasil e o resgate histórico da exploração e resistência dos negros foram assuntos abordados no seminário “130 anos de abolição: reflexões sobre o passado, o presente e o futuro do trabalho escravo no Brasil”, realizado na última quarta-feira, 30, em Maceió. O evento, promovido pelo Ministério Público do Trabalho (MPT) em Alagoas, com o apoio do Sebrae, Tribunal Regional do Trabalho e Lux Outmídia, reuniu cerca de 100 participantes, entre autoridades, representantes de classe e estudantes.
Na abertura do seminário, o procurador chefe do MPT em Alagoas, Rafael Gazzaneo, esclareceu que a reverência aos 130 anos de abolição não é motivo de comemoração, mas um importante momento para fazer uma reflexão diante de milhares de trabalhadores, de várias etnias, que ainda são vítimas do trabalho escravo no país. De acordo com dados do Ministério do Trabalho, cerca de 50 mil trabalhadores foram submetidos à trabalho análogo à escravidão no Brasil, nos últimos 20 anos.
O quadro “desalentador”, explica Gazzaneo, tem origem no sistema escravista clássico que deixou uma herança marcante de desigualdades sociais e o desrespeito dos empregadores a direitos trabalhistas elementares. “Os negros e pardos continuam sendo considerados cidadãos de segunda classe, separados e desiguais, inclusive sendo demonizados na sua cultura, na sua identidade, nas suas crenças e na sua estética. A prova é que são os pretos e os pardos os sem moradia, os sem emprego, os sem voz, são a grande maioria nas prisões brasileiras e vítimas das balas perdidas noticiadas cotidianamente”, disse.
A esperança para mudar a realidade do trabalho escravo no país, concluiu o procurador do MPT, são as ações afirmativas que vem proporcionando uma busca por igualdade em vários setores da sociedade. “A partir de iniciativas que têm proporcionado que pretos e pardos ocupem as escolas, universidades, os concursos públicos, é que esse quadro desolador deve se transformar numa redenção dos erros do passado, e, a partir daí, poderemos constituir uma nova nação”, explicou Gazzaneo.
História e identidade – Ativista do Movimento Negro em Alagoas, Helcias Pereira deu início à série de palestras com a exposição sobre “Escravidão do povo negro no Brasil e ações de resistência: a formação e a dinâmica dos quilombos”. Por meio de quadros, fotografias e cenas do filme Amistad (1997), o palestrante resgatou a história da vinda do povo negro ao Brasil e de como a escravidão se deu ao longo de séculos até culminar na reação das vítimas em quilombos, notadamente o de Palmares.
“Entre os séculos XVI e XVIII, os negros formaram mais de dois mil quilombos, alguns dizimados em poucos dias. Mas o Quilombo dos Palmares, em Alagoas, não. Ele durou de 1597 a 1704. Nele, havia tanta fartura de comida, a ponto de pessoas brancas e pobres de Recife o procurarem para não morrer de fome no período de seca”, contou Helcias Pereira, que defendeu o combate ao racismo por todos como forma de fazer justiça ao passado de luta.
No mesmo sentido de resistência, o professor universitário Hugo Leonardo apresentou a pesquisa que desenvolve na Faculdade de Direito da Universidade Federal de Alagoas na palestra “Escravidão e estratégias abolicionistas no campo jurídico”. O estudo se propõe a uma revisão da historiografia tradicional em relação aos anos antecedentes à abolição da escravatura no Brasil, no que se refere à atuação dos próprios escravos como sujeito e protagonista social.
“O escravo, enquanto objeto de pesquisas históricas, não pode ser considerado como um ser apenas condicionado, desprovido de vontade e entendimento do mundo. Pelo contrário, pressupõe-se que agia e se organizava em prol de sua liberdade, formando estratégias para tanto”, explicou o professor. E completa: “Não é possível analisar a instituição da escravidão tão somente por um viés econômico, muito embora ele seja de fundamental importância. É necessário compreender as circunstâncias culturais, sociais e políticas que envolviam a manutenção do regime escravista no Brasil”.
O antropólogo do Ministério Público Federal, Ivan Farias, deu sequência às apresentações com a exposição sobre “Aspectos da identidade quilombola em Alagoas”. Ele disse que, no estado, há 69 comunidades quilombolas certificados pela Fundação Palmares, sendo a primeira a do Muquém, em União dos Palmares, em 2005, e a mais recente a do Alto da Boa Vista, em Olho D’Água do Casado, em 2015.
“Data dos anos 2000, a tentativa dessas comunidades quilombolas de saírem da invisibilidade. O Estado Brasileiro, Alagoano possui uma dívida histórica com essa parcela da população, que é esquecida até mesmo pela Constituição Federal, resumindo os quilombolas ao art. 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias”, destacou. O antropólogo também afirmou que cada comunidade quilombola é única, mas que todas têm em comum o medo da escravidão voltar e a continuidade dos castigos físicos pela falta de políticas públicas e relações de trabalho estabelecidas.
Combate e perspectivas – O evento seguiu com a palestra do procurador do MPT Rodrigo Alencar, ao apresentar o contexto social que envolve a situação de trabalho análogo à escravidão em Alagoas. Alencar apresentou um resumo das atividades laborais já identificadas sob situação degradante no estado, a exemplo das culturas do coco, cana-de-açúcar, pecuária (esta em casos de trabalho sem registro em carteira), fumo e mandioca, e fez um panorama de toda a situação encontrada em casas de farinha no Agreste, na operação que resgatou este ano 92 trabalhadores em situação análoga à escravidão.
Segundo Alencar, o caminho para modificar essa situação é a adequação dos empregadores à legislação, a qualificação e inserção dos trabalhadores no mercado de trabalho, a assistência técnica aos produtores e outros fatores que contribuam com a redução das desigualdades. “Em Alagoas, trabalhadores ainda convivem com mortalidade infantil, coronelismo, corrupção e inexistência de extensão rural. Enquanto tivermos esse abismo social entre ricos e pobres, permanecerá essa superexploração do trabalhador e a vulnerabilidade ao trabalho escravo”, disse.
O seminário dos 130 anos de abolição foi concluído pelo vice-coordenador nacional de combate ao trabalho escravo (CONAETE) do MPT, procurador Ulisses Carvalho, que apresentou o conceito de trabalho escravo contemporâneo e uma comparação da escravidão em 1888, quando o escravo era propriedade de alguém, com a situação atual, que faz do trabalhador um meio de mão de obra barata e substituível.
Segundo Ulisses, o contexto histórico construído pela ausência do poder público levou o trabalhador a situação degradante. “Após a abolição, a busca por regiões periféricas das cidades, a procura por serviços ínfimos e alimento e a ausência de políticas públicas causaram uma vulnerabilidade social que reflete nos dias atuais, e que continua levando essas pessoas a serem mão de obra da escravidão contemporânea”, ressaltou Ulisses.
O vice coordenador da CONAETE explicou ainda que a proatividade na persecução do combate ao trabalho escravo, a atuação em setores produtivos específicos, o acompanhamento das vítimas – por meio de inserção em programas sociais e de empregabilidade -, além da análise de dados e o uso da tecnologia, são ferramentas utilizadas atualmente pelo MPT para buscar a erradicação da problemática. Segundo Ulisses, atualmente há cerca de 1000 inquéritos civis instaurados no Brasil para investigar esse tipo de conduta e aproximadamente 600 termos de ajustamento de conduta firmados.
Fonte: Ministério Público do Trabalho